

Enchentes no Rio Grande do Sul escancararam crise climática e falhas na gestão de riscos no Brasil

Há um ano, as enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul em maio de 2024 deixaram marcas profundas na paisagem, na economia e na vida de milhões de pessoas. Com mais de 180 mortos e centenas de milhares de desabrigados, a tragédia expôs não apenas a força avassaladora de eventos climáticos extremos, mas também evidenciou a crescente vulnerabilidade da região frente às mudanças climáticas e a necessidade urgente de políticas públicas eficazes e sistemas de proteção financeira robustos.
A tragédia também impactou significativamente o setor de seguros, com indenizações que ultrapassaram R$6 bilhões até dezembro de 2024, abrangendo mais de 57 mil solicitações.
As enchentes resultaram em um volume significativo de indenizações por parte das seguradoras. Até setembro de 2024, os pedidos de indenização somaram aproximadamente R$ 6 bilhões, abrangendo cerca de 58 mil ocorrências, conforme dados da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg) . O setor de "grandes riscos", que inclui infraestruturas como o Aeroporto Salgado Filho e os estádios de futebol do Grêmio e do Internacional, foi o mais impactado financeiramente, com cerca de R$3,2 bilhões em indenizações. Em seguida, destacam-se os seguros de automóveis, com R$1,2 bilhão, e os seguros residenciais e habitacionais, com R$601 milhões.
Apesar do montante expressivo, as indenizações representam menos de 10% dos prejuízos totais estimados no estado, que podem ultrapassar R$100 bilhões. A CNseg ressaltou na época que, embora o número de pedidos tenha se estabilizado, o valor total das indenizações poderia aumentar, especialmente nos casos de grandes riscos, que demandam avaliações mais detalhadas.
Não obstante a magnitude das indenizações, a baixa penetração de seguros entre os afetados revelou uma lacuna significativa na cobertura de riscos no país. Segundo especialistas, muitos contratos de seguros não contemplam eventos climáticos extremos, como enchentes e inundações, devido à ausência de cláusulas específicas ou exclusões de cobertura. A Superintendência de Seguros Privados (Susep) orientou os segurados a verificarem as condições gerais de seus contratos e a procurarem assistência jurídica para evitar negativas indevidas.
Estudos acadêmicos, como o de Vieira (2025), destacam a necessidade de aprimorar os produtos de seguros no Brasil, incorporando indicadores internacionais e adaptando-os às especificidades locais.
Há vinte anos, Righetto e Mendiondo (2004) propuseram a avaliação de riscos hidrológicos e a criação de seguros específicos contra enchentes, baseando-se em área de estudo de comércios locais no centro da cidade de São Paulo, município que historicamente sofre com tais eventos. Os pesquisadores apontaram fatores como a ineficiência de políticas públicas, o crescimento desordenado das cidades, a falta de infraestrutura para lidar com os locais afetados, entre outros. Tais propostas visavam auxiliar na mitigação dos riscos hidrológicos e apontavam para a criação de seguros específicos contra enchentes.
A tragédia no Rio Grande do Sul serve como um alerta para a urgência de políticas integradas que abordem as questões ambientais, climáticas e de gestão de riscos. É imperativo que o país invista em infraestrutura resiliente, sistemas de alerta precoce e na ampliação do acesso a seguros adequados, garantindo proteção financeira às populações vulneráveis e fortalecendo a capacidade de resposta diante de desastres naturais cada vez mais frequentes e intensos.
A situação gaúcha escancara essa lacuna. Como mostrou o G1, um ano após a enchente, bairros inteiros seguem abandonados, sem apoio financeiro para reconstrução, revelando a ausência de seguros eficazes e de políticas públicas de amparo. A tragédia no Rio Grande do Sul também repercutiu na mídia internacional, o jornal The Guardian fez uma matéria destacando como os cortes em licenciamento ambiental e o sucateamento da infraestrutura contribuíram para o colapso urbano em cidades como Porto Alegre.
A partir dessas evidências, especialistas apontam caminhos urgentes. Righetto e Mendiondo propõem o desenvolvimento de modelos paramétricos de seguro — atrelados a índices hidrológicos e não à avaliação pós-evento — que poderiam acelerar pagamentos e ampliar a cobertura. Já Vieira defende uma reforma regulatória que promova seguros mais inclusivos, acessíveis e vinculados a programas públicos de redução de riscos.
As enchentes de 2024 não foram apenas um desastre climático, mas um sintoma do colapso de múltiplos sistemas — ambientais, urbanos e institucionais. Reverter esse cenário exige um esforço coletivo que articule ciência, política pública e justiça social. Garantir cobertura contra enchentes e desenvolver instrumentos financeiros de proteção não é luxo: é uma necessidade diante da crise climática em curso. Se as medidas necessárias para a mitigação destes eventos não forem prioridade nas esferas econômica e política, tragédias como a vivida no Rio Grande do Sul tendem a se repetir com ainda mais força e alcance.
Fontes:
https://www.gov.br/susep/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2024/maio/enchentes-no-rio-grande-do-sul-susep-orienta-sobre-coberturas-de-seguros-que-podem-ser-acionadas-pelas-vitimas
https://www.theguardian.com/global-development/article/2024/may/24/brazil-floods
Artigos:
VIEIRA, DOUGLAS SANTOS. Seguro para enchentes e inundações no Brasil: Um estudo baseado em indicadores internacionais - Em: Revista PPC – Políticas Públicas e Cidades, Curitiba, v.14, n. 1, p.01 - 32, 2025.
RIGHETTO, JULIAN MARGARIDO e MENDIONDO, EDUARDO MÁRIO. Avaliação de riscos hidrológicos : Principais danos e causas e proposta de seguro contra enchentes. Em: III Simp. Rec. Hídricos Centro-Oeste - Goiânia (GO) - 2004.
Imagens:
Diego Vara/REUTERS




